Perfil com Arte

Cena da performance beckettiana inspirada na peça DIAS FELIZES, de Samuel Beckett no Festival de Curitiba, 2022. Foto: Diego Duda

Ruth Mezeck é aquela mulher!

Entrevista a Ali Celestino e Liriana Carneiro em 06 de abril de 2024.

Do alto de seus 88 anos de vida, Ruth Mezeck é uma mulher forte. Atriz, produtora, divulgadora, sempre em movimento e com novas ideias e projetos, a colega aposentada da Funarte tem uma longa e produtiva estrada, e atualmente está em cartaz com a nova temporada do espetáculo da Palhaça Sassah, “A Mulher Aquela”, às quintas-feiras 19h30 (até o fim de maio), no Novo Cine Teatro Joia, em Copacabana.

Sua jornada começa em 1935, na pequena Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul, numa família humilde: o pai era pedreiro e a mãe, modista, com muito orgulho. É uma típica brasileira: uma avó era indígena Guarani e o avô, imigrante judeu polonês. Com esta mistura de raças, até hoje Ruth não pinta os cabelos.

Com sete anos se muda para Santiago do Boqueirão, retornando para Santa Maria aos 14, e aos 20 vai para Porto alegre, onde cursa Arte Dramática na Universidade Federal e aprende o idioma francês. Este idioma e o curso de datilografia a levam ao seu primeiro emprego, como secretária na firma francesa fabricante da lã Pingouin. A empresa lhe dá uma bolsa para continuar o estudo do francês por alguns anos.

Rio de Janeiro

Em 1964, já com uma carreira de atriz iniciada e com prêmios em Porto Alegre, Ruth chega ao Rio de Janeiro, para um difícil começo na capital cultural. Inicialmente trabalha numa editora francesa, buscando as oportunidades como atriz.

Atuou no Teatro Nacional de Comédia (atual Teatro Glauce Rocha), em peças como “Viúva, Porém Honesta” (1968), de Nelson Rodrigues, na TV Tupy participou do “Grande Teatro Tupi”, e de várias outras produções. Para garantir a sobrevivência ela tinha empregos como secretária bilíngue, mas não era fácil, pois a profissão de atriz não era vista com respeito, despertando outros interesses nos possíveis patrões.

Em uma ocasião nesta época, Ruth atuava com um grupo de teatro israelita, e o espetáculo “O Avarento”, de Molière, foi capa do Caderno B do Jornal do Brasil. Uma semana depois foi dispensada do emprego numa financeira…

Ruth faz parte do elenco da peça “A Farsa da Boa Preguiça” de Ariano Suassuna, montada no Teatro Nacional de Comédia – atual Teatro Glauce Rocha, com direção de Luiz Mendonça, que ganha o prêmio Molière de direção em 1974.

Carreira pública à serviço do Teatro

Em uma peça no Teatro Ginástico conheceu Orlando Miranda, que depois a levou a atuar no Teatro Princesa Isabel, fundado por ele em 1965. Orlando foi presidente do Serviço Nacional de Teatro – SNT, nas décadas de 70 e 80, e ela foi participar de sua equipe.

Foto histórica dos jovens dançarinos do grupo de dança contemporânea Profissionais Liberados e a então diretora do grupo, Mestra Angel Viana. Ruth (a direita) ainda com o figurino

Ruth atuou na assessoria de comunicação do SNT em todas as suas versões e siglas, sempre em contato direto com a direção do órgão. Para sobreviver, visto que os salários da Cultura nunca foram os maiores do mercado, ela começou uma atuação como divulgadora de espetáculos no final dos anos 70, trabalhando com a trupe “Asdrúbal Trouxe o Trombone” e o Circo Voador, entre outros.

Em 1985 é criado o Ministério da Cultura e Ruth trabalha com o segundo (na prática o primeiro) ministro, Aluísio Pimenta, voltando ao INACEN ao fim de sua gestão, que na época “não tinha nem sala”, segundo ela. Nos anos de 1987 e 1988 é a chefe de comunicação do órgão (FUNDACEN neste ano…), sendo substituída por Armindo Blanco.

No governo de Fernando Collor em 1992, Ruth “pediu as contas” e se aposenta proporcionalmente com 25 anos de serviço, com o salário diminuído.

A artista

A artista não para quieta, viaja à França para conhecer os teatros de lá: faz panfletagens, cursos e outras agitações culturais em Paris, e se aproxima de Angel Vianna em cursos livres como aluna e depois professora. Durante cinco anos faz um trabalho com crianças e adolescentes, de reabilitação motora através do movimento, onde aprende muito: “A cultura mexe com o sistema”.

Depois de meses convivência, o primeiro gesto de interação de um autista foi puxar seu cabelo: “Ele estava se comunicando”. Uma menina com AVC tem paralisia do lado esquerdo e tem que aprender a dançar o lado direito do corpo. “Mudou a minha vida, descobri uma paciência que não sabia que tinha”.

Em 1998 ela faz um curso de Clow (Palhaçaria: gestos, ditos ou maneiras de palhaço; modo de agir espalhafatoso ou ridículo, exagerado; palhacice, palhaçada.), e começa uma nova forma de comunicar e vai dar origem a sua personagem Clownesse Sassah Coco de La Merde, vulgo Palhaça Sassah.

“A velhice acabou”

Rompendo com preconceitos e parâmetros, Ruth também se torna uma atriz burlesca depois dos 75 anos: “A velhice acabou, nos meus 88 anos ocupo um lugar que as pessoas nem imaginavam”.

A primeira aparição da personagem Clownesse Sassah Coco de La Merde foi em 2009, quando ela apresentou seu primeiro solo, “Sassaricos da Sassah”.

Num coletivo de palhaçaria em 2015, ela reencontrou Karla Conká, do Grupo As Marias da Graça, a quem convida para dirigir sua peça “A Mulher Aquela”, inspirada em “Dias Felizes”, de Samuel Beckett. “Karla levou três anos para aceitar…”

Em setembro de 2018, leva “A Mulher Aquela” ao 7º Festival Internacional de Comicidade Feminina — Esse Monte de Mulher Palhaça. E também foi selecionado para apresentação no Festival Internacional de Palhaças, o BOLINA, em Portugal, na cidade de Portalegre, em maio de 2019.

Ela produz a sua peça, e depois de meses de ensaios o espetáculo está pronto e é atropelado pela epidemia da Covid em 2020. Ruth então se inscreveu em várias seleções e concursos, mas não foi escolhida.

Só em março de 2024 “A Mulher Aquela” estreia no Novo Cine Teatro Joia, com texto, produção e atuação de Ruth, celebrando seus 25 anos como palhaça profissional, e direção de Karla Conká. Trazer características da personagem beckettiana Winnie na forma de palhaça foi um desafio. Numa entrevista ao jornal O Globo, Ruth diz:

“Eu faço da minha vulnerabilidade a minha potência. Na minha peça, a arte burlesca conversa com a arte da palhaçaria feminina em um encontro poderoso, burlando todos os preconceitos e estabelecendo novos parâmetros para a velhice humana, demonstrando que o conceito de velhice envelheceu e preparando novos parâmetros para a revolução da longevidade.”

A peça mexe com o público, juntando imaginação e acontecimentos reais da vida da autora, que conta a origem do nome da sua palhaça e fala, com sentimento, da placa de modista que sua mãe tinha na porta de casa.

“A palhaça salva! Ainda quero fazer ‘Dias Felizes’. Vou trabalhar toda a minha vida.”

Uma palhaça ao mar
Participando de manifestação com Maurice Durozier (ao centro), Juliana Carneiro da Cunha, Marcelo Pio, Cecilia Boal e outros, em apoio ao Movimento Martins Sem Pena, na luta pela sobrevivência da Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna, Rio de Janeiro, 2015
Ruth em “A mulher aquela”, 2024 – Foto: Liriana Carneiro